Segue aqui um registro do processo artistico-pedagógico vivido nos anos de 2006 e 2007 pelas educadoras Cibele Lucena, Jerusa Messina e Joana Zatz Mussi (naquele momento como integrantes do Coletivo Política do Impossível e, detalhe importantíssimo, com supervisão pedagógica de Fátima Freire) no Centro Comunitário do Parque Itajaí (bairro no extremo oeste de Campinas).
Sobre a presença da Fátima Freire, na verdade, é marca fundamental. A Fátima não supervisionava apenas o nosso trabalho, nossos planejamentos, dúvidas metodológicas, angústias, nossos caminhos e descaminhos mas, também e principalemente, nos supervisionava como grupo, como gente, corpo individual dentro do grupo. Assim, nos deixando mais conscientes, nos instrumentalizava para um trabalho mais presente.
Sobre a presença da Fátima Freire, na verdade, é marca fundamental. A Fátima não supervisionava apenas o nosso trabalho, nossos planejamentos, dúvidas metodológicas, angústias, nossos caminhos e descaminhos mas, também e principalemente, nos supervisionava como grupo, como gente, corpo individual dentro do grupo. Assim, nos deixando mais conscientes, nos instrumentalizava para um trabalho mais presente.
Este processo - enquanto ele acontecia ainda não tinhamos clareza para nomeá-lo assim - é parte do processo maior do Parque para Brincar e Pensar que o Contrafilé vem desenvolvendo. Talvez já uma semente dele, um indício, uma pista. Tá aqui descrito como passo a passo metodológico, por desejo-necessidade de sistematizar, registrar, entender, avançar. Mas é um passo que não se repete. Assim que descrito, já não é mais o mesmo...
Nossos objetivos com o processo:
Nosso “saber-fazer” é identificar urgências - cartografá-las (constelação de urgências) – formalizá-las a partir de um repertório de estratégias e conteúdos artísticos – inscrever as urgências no mundo.
Como apresentar isso para os alunos e ao mesmo tempo entender melhor o contexto no qual atuamos? Como começar a visualizar as possíveis “urgências” a partir da experiência vivida daquelas pessoas, sem que estas precisassem neste momento passar por um discurso verbal formalizado?
Construção simbólica, tornar visível o invisível.
Passo a passo metodológico:
momento 01: cartões postais...
1. Metáfora: transformar um passeio pelo bairro em um passeio turístico. Nós éramos as turistas, eles os guias. Eles teriam que nos apresentar os lugares e transformar os lugares escolhidos em cartões postais do bairro. “Hoje vamos fazer um passeio turístico destacando coisas visíveis e invisíveis do bairro. Nós somos as turistas, vocês os guias.”
2. Escolher 4 lugares que provavelmente virariam cartões postais de Itajaí (lugares “oficialmente” reconhecidos) / escolher 4 lugares que provavelmente não virariam cartões postais de Itajaí.
3. Levamos vários cartões postais oficiais, de diferentes lugares do mundo e do Brasil. Colocamos no meio da roda, formada no pátio.
4. Olhamos para os cartões postais no centro da roda. Começamos a perguntar para que servem. Eles responderam:
- “Para mostrar pontos turísticos”,
- “Para os lugares que aparecem ganharem mais dinheiro”,
- “para chamar a atenção de alguns lugares da cidade”.
5. Que tipos de coisas geralmente aparecem nos cartões? "Monumentos, lugares históricos, paisagens." O que normalmente não aparece? "Lixo, favelas, esgoto, lugares pobres".
6. Mostramos fotos que tiramos de cada um de nós (Jerusa, Cibele, Joana e Peetssa, membros do Contrafilé naquele momento) em lugares que consideramos especiais da cidade em que vivemos. Falamos que estes são lugares que virariam cartões postais para nós, pois são importantes e significativos, pois mostram características importantes da cidade, mas que normalmente não são contemplados nos cartões postais oficiais.
7. Em Itajaí, o que viraria cartão-postal? "O Centro Comunitário (A Dona Ilza), Posto de Saúde, Seu Waldemar (liderança), parquinho, a entrada do Jardim Itajaí".
8. Em itajaí, o que não viraria cartão-postal? "Ponto de fronteira entre os bairros, bairro Floresta (bairro mais pobre ao lado), bosque abandonado (onde acontecem assassinatos), o quarto da Laysa, campinho de futebol, escola."
Casa da Laysa
Bosque abandonado
9. Fomos a cada um destes lugares para fotografá-los e transformá-los realmente em cartões postais.Levamos o mapa do bairro. Percebemos o quanto este exercício de localização de seu lugar no mundo é importante e o quanto é necessário. Mapeamento de urgências: partir de um mapa físico dar o salto para o mapa do possível, como sobreposição do primeiro >>> cartografia subjetiva. Agora olhar mais atentamente para estes lugares, nomeá-los, fazer com que os grupos compartilhem com mais concentração o porque de os terem escolhido.
10. Evidenciar a existência de cartões postais oficiais, não oficiais e introduzir a possibilidade da criação de coisas no mundo que pudessem transformar o lugar e virar possíveis cartões postais, como “cartões postais do desejo”. [“Que idéias vocês teriam, de fazer coisas no bairro que desejam, para virarem cartões postais?”
11. Criar um mapa mais claro dos lugares físicos, nomeando-os e, ao nomeá-los, introduzir a dimensão da fantasia, do desejo, das sensações em relação aos diferentes lugares. Levamos cartões postais oficiais de Campinas e obras de artistas que interferem na paisagem transformando-a, referências baseadas nas observações dos próprios lugares. Com isso delineamos tanto as camadas físicas quanto subjetivas da relação deles com este espaço, começando a extrapolar o que é visível, o que não é visível para o que é possível e desejado neste grupo.
12. Criar cartografia a partir do mapa de Campinas e compartilhar a configuração criada: Itajaí x Centro (centro x periferia, oficial x não oficial) / Itajaí como foco (o que é provável x o que é improvável em Itajaí). Dispor cartões postais de todos os tipos no mapa.
13. “Alguém pensou em alguma idéia impossível?” [cartão postal do desejo] Se pensou, escrever e colocar no mapa.
14. Observação de postais de artistas: impossíveis que se tornaram possíveis. [monumento à catraca do Contrafilé; trabalho do Zezão nos bueiros; intervenção da Mônica Nador/JAMAC no Jardim Miriam...]
15. Os postais clarearam os eixos:
- marginal x oficial / visível x invisível:
postais vendidos em Campinas x postais de Itajaí criados pelos alunos;
- prováveis x improváveis (postais produzidos por eles):
pessoal x social, abandonado x cuidado, anonimato x estrelato, etc.;
- impossível x possível:
postais que criamos com imagens de artistas, de intervenções urbanas.
Cartões-postais prováveis:
Quais características dos locais registrados nas fotos os definiriam como cartões postais prováveis?
Título: Divisas do Campo Grande
Descrição: É um lugar que reúne as principais entradas e saídas do Campo Grande [Itajaí é um dos bairros que compõem a região de Campo grande].
Título: O Nosso Ponto Turístico (da Região)
Descrição: O anonimato. Se o Ronaldinho estivesse neste campo com a bola no pé, este seria o cartão mais vendido.
16. Mapa oficial. Localizar e fixar no mapa oficial de Campinas os cartões oficiais.Percebemos rapidamente que os postais estavam todos localizados no centro, mostrando áreas nobres. O aspecto mais apontado por eles foi o fato de Itajaí não aparecer no mapa oficial - apenas em um mapa pequeno que afixamos em anexo. A Daniela logo disse: nossa, Itajaí é invisível. Outro aspecto importante levantado foi que os cartões oficiais vendidos em bancas não abarcam Itajaí. E por que será?, perguntei. Jonas respondeu: por que moramos em um bairro pobre e ninguém quer um postal de lugar pobre. Ficamos então discutindo a importância dos postais que começamos a fazer na aula passada. Tornar Itajaí visível.
17. Cartografia: o mapa oficial com os postais oficiais e o mapa de Itajaí com os postais prováveis e improváveis. Em um dos postais, aparecia uma fotografia de um esgoto subterrâneo de São Paulo, com uma pintura do Zezão - grafiteiro que pinta bueiros. Os alunos comentaram que sem a pintura, aquilo nunca seria percebido, muito menos como cartão postal. Com a arte, aquilo tinha uma diferença. Pudemos discutir conceitualmente alguns trabalhos (como foi o caso da Catraca) e, ao mesmo tempo, colocar todos em um mesmo sentido, da construção do possível. Abriu-se um portal para a discussão do possível, da transformação do espaço, da arte como um instrumento para a transformação. Definiu-se a série O Impossível se Torna Possível.
18. Chegamos em quatro séries de cartões postais: os oficiais, os prováveis, os improváveis, ou tudo ou nada (série mista) e o impossível se torna possível.
momento 02: as placas...
19. A partir desse processo com os postais, nossa idéia era continuarmos na “viagem turística” por Itajaí. Investigando o lugar... Agora de olho nos elementos que comunicam, oficial ou não-oficialmente, suas regras: as placas. Analisaríamos seus conteúdos conceituais e formais: como são? O que informam? Pra que servem? Compararíamos estas com outras “falsas”, criadas por artistas como deslocamento/inflexão na realidade. Inauguramos com os alunos a prática de construir realidade.
Placas encontradas no bairro pelos alunos
20. Verticalizando a metáfora do cartão postal, evidenciou-se como objetivo a intervenção no bairro pelos jovens, a partir de desejos aparentemente impossíveis que tornam-se possíveis. Estas ações que partem dos desejos, configuram uma nova paisagem que se tornará "cartão postal do impossível". As placas são um circuito muito concreto, onde é possivel visualizar facilmente o tipo de informação compartilhada socialmente. Partindo por tanto de uma dimensão mais concreta para discutir o que é compartilhado como norma e o que foge a norma, podemos perceber a dimensão da possibilidade. A placa oficial equivale ao cartao postal oficial. Os dois comunicam apenas o que interessa à ordem dominante.
21. As placas tornam-se uma metáfora dentro de uma metáfora dentro de uma metáfora:
A primeira metáfora, que deu origem as outras no que diz respeito a pesquisa do bairro, foi a do turista que chega no lugar. Para visitar este lugar, ele precisa entender o que ha de interessante nele. Surge entao a metáfora do cartão postal, contida também da crítica daquilo que é invisível no discurso oficial sobre os lugares. Constata-se então que o que é visível aos olhos do oficial não contempla tudo o que há de interessante em um lugar. O cartão postal, por sua vez, é uma imagem, normalmente muito parcial de um lugar, das suas paisagens objetivas. Quais são os elementos oficiais desta paisagem? Como interferir nos elementos da paisagem objetiva [placas] transformando-a a partir de outras objetividades e subjetividades? A partir destes binômios: normal X anormal; visível X invisível; oficial X não oficial; vamos criar o anormal dentro do normal, o invisível no interior do visível, o não-oficial tendo como suporte e oficial. Esta foi então a proposta: criar placas impossíveis, a partir do que se quer dizer.
22. Realização das placas: “Rua dos encontros e desencontros”, “Ronaldinho...”, “Pare. Olhe ao redor. Cadê o bosque?”:
O Ronaldinho vale milhões. Qual o nosso valor?
Professora de geografia da escola do bairro dá depoimento no dia da instalação das placas, comentando a importância do bosque para a comunidade.
Inspirada pelos jovens, professora de geografia coloca faixa na porta de sua casa,
pedindo um bosque às autoridades da cidade
O dia em que o Ronaldinho "visitou" Itajaí...
23. Por que o bosque?
O bosque contem a dimensão visível e a invisível;
Por que ele é um espaço físico (circunscrito) mas de fato não existe como realidade, apenas no imaginário coletivo da comunidade;
Ele se revelou como um desejo/urgência da comunidade >>> assembléias publicas, convocatória para encontro celebrativo;
Grande potencial metafórico;
Metáfora local e global, ao mesmo tempo;
Tem muitas histórias ligadas a ele.
Como o bosque já apareceu em nosso processo?
Como um cartão-postal não oficial;
Como intervenção, em seqüência de placas elaborada pelos alunos;
Na reação da professora à essas placas;
27. Mas como é o bosque que desejávamos encontrar? Cada um faz o desenho do bosque que deseja num cartaz “wanted” e saímos todos juntos para colá-los pelo bairro.
Missões:
- levantamento da memória oral da comunidade;
- levantamento do imaginário da comunidade em relação ao bosque;
- levantamento da história oficial do bairro e do bosque;
- investigar o bosque real (dimensões, características, etc.);
- divulgar o projeto, devolvendo para a comunidade seus desejos;
- aumento de repertório de narrativas; imagens de outros bosques reais; arte e intervenção; contos de fada; cidades invisíveis;
- construção dos seres a procura de um bosque;
24. Questões: Quais demandas a gente atende e quais demandas a gente não atende? Até onde podemos chegar?
25. Ação inaugural: “Alguém viu um bosque por aí?”
Subimos a rua do centro comunitário colando cartazes tipo “wanted” [com moldura vazia de imagem] >>> seres a procura de um bosque, caracterizados: roupitchas, balde de cola, vassourinha, cartazes, escada...
[os alunos assistem a cena do portão do centro comunitário]
Então eles nos levam ao “bosque de Itajaí”
26. Já no bosque, numa grande assembléia de cadeiras, conduzimos a conversa para que eles nos contassem “como é o bosque que encontramos?”, subindo na escada e descrevendo o que vêem.
27. Mas como é o bosque que desejávamos encontrar? Cada um faz o desenho do bosque que deseja num cartaz “wanted” e saímos todos juntos para colá-los pelo bairro.
28. O bosque era um mito, cuja imagem era um amontoado de mato e lixo, algo que não tinha forma de bosque. Daí as placas criadas pelos alunos no momento anterior: "pare", "olhe ao redor", "cadê o bosque?".
29. Primeira visita ao bosque - que a Prof. Nadir e os alunos fizeram ao local -, uma surpresa: o bosque, de dentro, não é um amontoado de lixo e mato. De dentro ele é um bosque: tem bichos, árvores, rio, nascentes, cachoeiras, etc. Fomos até lá com os adolescentes e compartilhamos com eles a experiência de perceber o bosque como bosque.
O que tem no bosque que faz dele um bosque?
O que tem no bosque que faz dele um bosque?
- Pássaros
- Peixes
- Rio
- Insetos
- Cobra
- Répteis
- Árvores
- Cachoeira
O que falta no bosque para que seja bosque?
- Divulgação
- Limpeza
- União para cuidar do bosque
- Respeito
- Conservação
- Consciência
- Conhecimento do lugar pelos moradores
- Orelhão
- Área livre
30. Excursão dois no bosque: entrando ainda mais e descobrindo mais ainda que ele é mais encantado do que imaginávamos (aprofundamento da imagem de dentro do bosque e início do processo de mudança da auto-imagem como pessoas e como comunidade – ouvimos: Viu como não somos favelados?!. Instalação de um novo espaço interno-externo de potência vital).
momento 04: uma trilha-manifesto...
31. Proposta de ação: trilha como fato (experiência) e como imagem (projeção do desejo): trilha-manifesto.
A trilha pode revelar aquilo que percebemos: o bosque é um bosque. Como disse o Alex, diante da cachoeira: "Tá vendo, a gente não é favela, a gente tem um bosque".
Sendo a trilha o objeto final de trabalho, como podemos articular todas as suas esferas, das mais fantásticas às mais concretas? Pontuamos que nós três, como educadoras, precisamos estabelecer um foco de trabalho (os adolescentes) para que a trilha possa se realizar. Sugerimos que a instituição (Maria Lúcia e Laysa) se responsabilizem pela articulação com a prefeitura, secretaria do meio ambiente, etc. para descobrir como está o bosque no projeto oficial. A Maria Lúcia e a Laysa se prontificaram a participar. As crianças podem construir o portal de entrada. Inventar um jardim para entrada do bosque, instalar a placa de entrada com o nome do bosque (que elas podem eleger), etc. Criar o "portal".
32. A Nadir teve uma idéia: em julho teria uma festa junina no centro comunitário. "Podemos fazer a "barraca do bosque" junto com as crianças e adolescentes, durante a semana. A barraca pode ter as fotos do processo, as faixas que os alunos já fizeram e um panfleto para conscientizar a comunidade, pedindo para que todos parem de jogar lixo, fazer queimadas e cocô na trilha. Este panfleto pode já divulgar o mutirão de limpeza no início de agosto."
E assim a própria comunidade - crianças, jovens, professores - assumiu a luta pelo Bosque. Os jovens foram à Prefeitura de Campinas, fizeram manifestos, novas ações... como nos conta Laysa - com quem ainda mantemos contato através das redes sociais - este processo foi um marco para todos que se envolveram. A Laysa, junto com outros jovens, sistematizou o processo em um PDF e, através dele, apresenta e discute, ainda hoje, "o projeto para um Bosque" em encontros de jovens e comunidades na região de Campinas.
3 comentários:
Alguns vídeos sobre o projeto, que foram apresentados no Encontro da Cidadania. Ganhou 1º Reconhecimento como projeto de impacto na comunidade.
Toda História do Cadê o Bosque?
http://www.youtube.com/watch?v=q9SuZtJ37Jw
Cadê o bosque? o começo de tudo
http://www.youtube.com/watch?v=KNicP5WlJV4&feature=related
Cadê o Bosque parte 2
http://www.youtube.com/watch?v=G8Dq8nUjdik&feature=related
obrigada, Laysa querida!
beijos
Cibele e Joana
Que projeto mais lindo!!!
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