27 março 2011

O que é centro? uma ligação entre a música atonal e as favelas




Inexata é a definição do que significa música atonal, surgida na Europa, no início do séc XX (muitos livros sobre música consideram à parte a história da música africana, é preciso corrigir isto ligando o saber ancestral africano com a música elaborada atualmente). Música atonal: sem um centro, um imã. Sem uma hierarquia onde a composição das notas precise obedecer, necessariamente, uma ordem de sons com funções específicas (exagerando: notas com funções pré-determinadas, como notas de preparação, notas de passagem, de resolução, notas fundamentais e nada mais).

Na música atonal/jazz (Miles já teve momentos atonais) as notas podem ser escolhidas pela sua sonoridade, não pela sua função, resultando em acordes “ambíguos” e únicos, um sentimento de imprevisibilidade de sons diferentes.

Mais exata, no entanto, é a contextualização histórica da música tonal. A solidificação da música tonal se dá no tempo em que o mundo capitalista substitui o mundo feudal (definição do músico José Miguel Wisnik no livro O Som e o Sentido[1]). Ele afirma: “a música tonal participa da própria constituição da idéia moderna de história como progresso”. Este período durou do séc XVI ao começo do séc XX. Depois de se solidificar, a música tonal encontra um “ponto máximo de equilíbrio balanceado”, com o período clássico que abarca de Haydn até Beethoven. Depois de saturada, a música tonal se desagrega com as primeiras pinceladas do atonalismo (início de 1900).

O texto Uma Introdução à Improvisação[2], de Marc Sabatella, fala que “a verdadeira intenção da música atonal é permitir que você se concentre nas sonoridades em si”.  No meu ponto de vista, é obter o equilíbrio com receitas imprevistas que dialogam com novos saberes e com saberes ancestrais, como se o centro gravitacional da composição pudesse mudar no decorrer do tempo em que a música dura. Vale lembrar que na Alemanha nazista a música atonal foi rotulada de arte degenerada, muitos compositores tiveram suas obras proibidas pelo regime. O músico suíço Walter Smetak, que criou instrumentos musicais imprevistos, veio para o Brasil fugindo do nazismo para encontrar aqui um campo novo de atuação artística.

Mas quem sabe se os artistas daqui, embora formados pela cultura européia, não se sentirão mais descompromissados para a livre experimentação, por se acharem mais distantes dos centros tradicionais?
Augusto de Campos sobre Walter Smetak

Existe uma ligação entre os conceitos trabalhados pela maneira de fazer música atonal e a conversa que tivemos no carro há duas semanas atrás quando estávamos indo para o JAMAC: falamos que num momento decidido em grupo, poderiam ser levadas ao Parque para Brincar e Pensar as questões “o que é centro?”, “qual é o seu centro”, “o centro é algo que pode ser percebido de novas maneiras?” e outras questões mais. Conforme fui escrevendo este diário, ressaltei estas idéias, tanto em reflexões sobre o atonalismo, como em trechos que li do livro Planeta Favela[3], do arquiteto Mike Davis. Os recortes estão abaixo:

“Nas cidades de crescimento desordenado do Terceiro Mundo, “periferia” é um termo extremamente relativo e específico de um momento: a orla urbana de hoje, vizinha de campos, florestas ou desertos, pode amanhã tornar-se parte de um denso núcleo metropolitano”.

“O arquiteto e teórico alemão Thomas Sieverts propõe que esse urbanismo difuso, que chama de Zwischenstadt (a cidade intermediária) esteja se tornando rapidamente a paisagem que define o século XXI, tanto nos países ricos quanto nos pobres, seja qual for sua história urbana pregressa... conceitua essas novas conurbações como teias policêntricas, sem núcleos tradicionais nem periferias fáceis de reconhecer”.

“Em todas as culturas do mundo inteiro, compartilham características específicas comuns: uma estrutura de ambientes urbanos completamente diferentes que, à primeira vista, é difusa e desorganizada, com ilhas individuais de padrões geometricamente estruturados, uma estrutura sem centro claro mas, portanto, com muitas áreas, redes e nós...

“Em todo o caso, o novo e o velho não se misturam com facilidade, e na desakota dos arredores de Colombo “as comunidades estão divididas entre os de fora e os de dentro incapazes de construir relacionamentos e comunidades coesas.”

“O sociólogo turco Çaglar Keyder afirma algo semelhante sobre os gecekoundus que circundam Instambul: “Na verdade, não seria muito inexato pensar em Instambul como um conglomerado desses bairros gecekoundu com limitada unidade orgânica.
Conforme se acrescentam novas áreas de gecekoundu, inevitavelmente no perímetro exterior, mais nós se tecem na rede de maneira social.”

Espero que possa ser útil!
Um abração!

Cássio Martins


[1] Wisnik, José Miguel. O Som e o sentido, uma outra história das músicas. Companhia das Letras: Círculo do Livro, 1989.
[3] Davis, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.