30 março 2011

1º mutirão de limpeza com feijoada e tamburecos

No sábado 26/03 fizemos o 1º mutirão de limpeza na área do Parque - cortar mato, separar plástico, tirar entulho. As crianças, ao longo do dia, trabalharam entre a limpeza e a construção de tamburecos - os tamburins feitos de tubo de PVC. Enquanto isso, várias mulheres trabalharam duro na preparação da feijoada que fechou o trabalho.









27 março 2011

O que é centro? uma ligação entre a música atonal e as favelas




Inexata é a definição do que significa música atonal, surgida na Europa, no início do séc XX (muitos livros sobre música consideram à parte a história da música africana, é preciso corrigir isto ligando o saber ancestral africano com a música elaborada atualmente). Música atonal: sem um centro, um imã. Sem uma hierarquia onde a composição das notas precise obedecer, necessariamente, uma ordem de sons com funções específicas (exagerando: notas com funções pré-determinadas, como notas de preparação, notas de passagem, de resolução, notas fundamentais e nada mais).

Na música atonal/jazz (Miles já teve momentos atonais) as notas podem ser escolhidas pela sua sonoridade, não pela sua função, resultando em acordes “ambíguos” e únicos, um sentimento de imprevisibilidade de sons diferentes.

Mais exata, no entanto, é a contextualização histórica da música tonal. A solidificação da música tonal se dá no tempo em que o mundo capitalista substitui o mundo feudal (definição do músico José Miguel Wisnik no livro O Som e o Sentido[1]). Ele afirma: “a música tonal participa da própria constituição da idéia moderna de história como progresso”. Este período durou do séc XVI ao começo do séc XX. Depois de se solidificar, a música tonal encontra um “ponto máximo de equilíbrio balanceado”, com o período clássico que abarca de Haydn até Beethoven. Depois de saturada, a música tonal se desagrega com as primeiras pinceladas do atonalismo (início de 1900).

O texto Uma Introdução à Improvisação[2], de Marc Sabatella, fala que “a verdadeira intenção da música atonal é permitir que você se concentre nas sonoridades em si”.  No meu ponto de vista, é obter o equilíbrio com receitas imprevistas que dialogam com novos saberes e com saberes ancestrais, como se o centro gravitacional da composição pudesse mudar no decorrer do tempo em que a música dura. Vale lembrar que na Alemanha nazista a música atonal foi rotulada de arte degenerada, muitos compositores tiveram suas obras proibidas pelo regime. O músico suíço Walter Smetak, que criou instrumentos musicais imprevistos, veio para o Brasil fugindo do nazismo para encontrar aqui um campo novo de atuação artística.

Mas quem sabe se os artistas daqui, embora formados pela cultura européia, não se sentirão mais descompromissados para a livre experimentação, por se acharem mais distantes dos centros tradicionais?
Augusto de Campos sobre Walter Smetak

Existe uma ligação entre os conceitos trabalhados pela maneira de fazer música atonal e a conversa que tivemos no carro há duas semanas atrás quando estávamos indo para o JAMAC: falamos que num momento decidido em grupo, poderiam ser levadas ao Parque para Brincar e Pensar as questões “o que é centro?”, “qual é o seu centro”, “o centro é algo que pode ser percebido de novas maneiras?” e outras questões mais. Conforme fui escrevendo este diário, ressaltei estas idéias, tanto em reflexões sobre o atonalismo, como em trechos que li do livro Planeta Favela[3], do arquiteto Mike Davis. Os recortes estão abaixo:

“Nas cidades de crescimento desordenado do Terceiro Mundo, “periferia” é um termo extremamente relativo e específico de um momento: a orla urbana de hoje, vizinha de campos, florestas ou desertos, pode amanhã tornar-se parte de um denso núcleo metropolitano”.

“O arquiteto e teórico alemão Thomas Sieverts propõe que esse urbanismo difuso, que chama de Zwischenstadt (a cidade intermediária) esteja se tornando rapidamente a paisagem que define o século XXI, tanto nos países ricos quanto nos pobres, seja qual for sua história urbana pregressa... conceitua essas novas conurbações como teias policêntricas, sem núcleos tradicionais nem periferias fáceis de reconhecer”.

“Em todas as culturas do mundo inteiro, compartilham características específicas comuns: uma estrutura de ambientes urbanos completamente diferentes que, à primeira vista, é difusa e desorganizada, com ilhas individuais de padrões geometricamente estruturados, uma estrutura sem centro claro mas, portanto, com muitas áreas, redes e nós...

“Em todo o caso, o novo e o velho não se misturam com facilidade, e na desakota dos arredores de Colombo “as comunidades estão divididas entre os de fora e os de dentro incapazes de construir relacionamentos e comunidades coesas.”

“O sociólogo turco Çaglar Keyder afirma algo semelhante sobre os gecekoundus que circundam Instambul: “Na verdade, não seria muito inexato pensar em Instambul como um conglomerado desses bairros gecekoundu com limitada unidade orgânica.
Conforme se acrescentam novas áreas de gecekoundu, inevitavelmente no perímetro exterior, mais nós se tecem na rede de maneira social.”

Espero que possa ser útil!
Um abração!

Cássio Martins


[1] Wisnik, José Miguel. O Som e o sentido, uma outra história das músicas. Companhia das Letras: Círculo do Livro, 1989.
[3] Davis, Mike. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.


23 março 2011

3ª reunião com a comunidade: referências, histórias e música

No sábado, dia 19 de março, fizemos o terceiro encontro na comunidade da Dona Carmem. Pela primeira vez montamos um espaço protegido da chuva no "fiozão" e pudemos trabalhar direto na área do Parque para Brincar e Pensar.

Mauro e a Rádio Poste, tocando "Por Todas as Partes" do CD Diáspora Afronética, Frente 3 de Fevereiro

 
 
 

Num primeiro momento do encontro, apresentamos algumas referências, organizadas a partir de subgrupos de trabalho do projeto: sustentabilidade/construções; jardins; música/comunicação.

 


Uma referência apresentada: o Balanço de bambú criado pelo Contrafilé no Parque do Ibirapuera, em 2008. Achávamos que apenas crianças seriam convocadas a brincar, porém nos surpreendemos ao ver filas de pessoas de todas as idades sendo formadas e todos brincando juntos. Poderíamos nos perguntar qual a diferença entre uma montanha-russa na qual pessoas de todas as idades brincam juntas e estes “brinquedos-obras” que aqui descrevemos e propomos construir. A principal diferença é o aproveitamento deste espaço de desejo e de diversão como espaço de troca, diálogo e invenção. É a expansão da situação, transformada em processo. Depois de desmontado, o brinquedo gigante se transformou em um galpão na Reserva Canhambora, Vale do Ribeira/SP.



Latovasos da Cibele e outras referências, como vasos de pneus, encontradas na internet:


Cássio apresenta a proposta de construção de brinquedos sonoros:




Para fechar o encontro, Joana faz uma leitura musicada do conto "A Repartição dos Pães", de Clarice Lispector:




A Repartição dos Pães
Clarice Lispector

Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado,ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós...

Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.

Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. 'Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

Pão é amor entre estranhos.

Texto extraído do livro "Laços de família", Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1991.

16 março 2011

2ª reunião com a comunidade: histórias, cantigas e proliferação

No último sábado fizemos o segundo encontro com a "comunidade da Dona Carmem". Estavam presentes: Contrafilé, Mauro, Marina, Cássio, Denilson e um grupo de mães e crianças da comunidade. 

Reconhecemos que estamos trabalhando prioritariamente com um "grupo de mães". Mãe no sentido amplo, com a "entidade mãe", figura cuidadora, que pensa e acolhe a criança. Criança que é reflexo da condição contemporânea da sociedade e tema de nossa investigação e ação. Criança que vem sendo abandonada em todos os sentidos, quando já não tem mais lugar nem espaço para ser criança, para ouvir histórias de seus ancestrais, para cantar cantigas, para brincar.  

Abrimos o encontro garantindo um lugar afetivo, de cantigas e memórias, criado por mães e crianças juntas. Depois desta roda de música, saimos juntos pela comunidade para colar os cartazes produzidos no encontro passado, como uma forma de divulgar o projeto do Parque para Brincar e Pensar para toda a comunidade. 

Cidade educadora = hoje, o que mais temos que aprender é a produzir espaço público (o mestre ignorante perguntaria: como podemos ensinar a produzir espaço se também não sabemos fazer isso?). Quando produzimos espaço coletivamente, este espaço é necessariamente público, porque surgiu do conflito/confronto entre uma diversidade de desejos e pessoas.